Violência no futebol desvirtua essência das torcidas e rivalidades no Brasil

"Não seria uma reclamação, um grito contrariado, um palavrão ou a expressão de um pensamento que iria ultrapassar estes limites, mas sim a prática do racismo, da xenofobia, do machismo ou qualquer outra manifestação que vise atacar o indivíduo"

A violência nos estádios estão tirando a segurança e a liberdade do torcedores aprecie um bom espetáculo do esporte mais famoso no país

Grêmio e Internacional sem violência nos estádios
Grêmio e Internacional sem violência nos estádios. (Foto: Divulgação/ Internacional)

Campinas, SP, 15 – Perto de completar 20 anos, o Estatuto do Torcedor traz em um dos seus artigos uma frase que define o seu objetivo: promover o futebol como uma “manifestação festiva e amigável”. Duas décadas se passaram e o texto da legislação soa um tanto ingênuo para quem o lê. Pela simples constatação de que, no futebol brasileiro, a legislação evoluiu, com campeonatos mais organizados, maior fiscalização e tentativa de seguir o estatuto, mas, por outro lado, o avanço civilizatório não foi possível, porque parte da sociedade regrediu.

A violência aumentou, principalmente a partir dos anos 2000, a tal ponto que passou a impedir duas torcidas de dividirem as arquibancadas, como acontece em muitos Estados brasileiros, em que o visitante recebe uma cota ínfima de ingressos. Em São Paulo, nem isso é possível nos clássicos estaduais. Por determinação das autoridades, que não conseguiram conter as brigas, estes ocorrem com torcida única. Nem por isso, as brigas em regiões até distantes dos estádios deixaram de ocorrer.

A violência, no entanto, nem sempre é concreta. Ela também se manifesta na atmosfera de ódio que cerca o futebol, por meio de ofensas, posturas desumanas, indiferença ao sofrimento alheio. Mesmo muitos torcedores comuns, tido como não-violentos, deixaram de ver no rival um adversário, passando a confundi-lo com inimigo a ser extinto. A intolerância ganhou mais força no Brasil e, em muitos casos, rivalidade passou a ser sinônimo de hostilidade.

O ato de torcer, em tese uma maneira de inserir o torcedor como cidadão, tem se desvirtuado de sua essência, espelhando a desigualdade e as mazelas do Brasil e fazendo do futebol uma válvula de escape para frustrações do dia a dia.

“Tanto a liberdade de expressão, prevista no art. 5º, incisos IV e XI, da Constituição Federal, quanto o lazer, e nele se incluem a prática desportiva e a atividade de torcer por um time de futebol (art. 6º, da Lei Magna), são princípios constitucionais que garantem ao cidadão manifestar-se livremente durante um jogo ou após o evento de maneira espontânea e sem nenhum tipo de censura”, observa a advogada Tamara Segal, pós-graduada pela PUC-SP.

Neste cenário de dificuldades, de maior visibilidade do esporte, com as redes sociais, as inúmeras transmissões de jogos e o aumento da pressão sobre técnicos e jogadores, muitos torcedores passaram a ver o futebol como uma espécie de “vale-tudo”. Em vez de o considerarem uma distração, um entretenimento, uma forma de integração.

A identidade de torcedor acena para a ilusão de que ele está acima da lei. Com o direito de anular o oponente. Na prática, agredindo-o. E, simbolicamente, por meio da intolerância. Quando chega a esse ponto, o ato de torcer se torna uma prática ilegal, conforme ressalta Segal. “Como qualquer outro princípio constitucional, estes direitos de livre manifestação encontram limites na dignidade da pessoa humana, em sua integridade física e espiritual”, observa.

Grêmio e Internacional sem violência nos estádios
Grêmio e Internacional sem violência nos estádios. (Foto: Divulgação/ Internacional)

PROIBIÇÃO DE CLUBES

Muitos limites têm sido ultrapassados, ainda, apesar de todo o esforço da legislação, que, na maioria dos casos, não tem conseguido promover um clima de paz durante os jogos de futebol. Paz nos estádios, nos dias de hoje, parece até um slogan ultrapassado. Assim como paz no futebol.

“Não seria uma reclamação, um grito contrariado, um palavrão ou a expressão de um pensamento que iria ultrapassar estes limites, mas sim a prática do racismo, da xenofobia, do machismo ou qualquer outra manifestação que vise atacar o indivíduo na sua psique e na sua segurança física e imaterial, não o time que ele representa ou torce. Essa prática vai contra os preceitos constitucionais”, destaca.

A ideia de que rival é inimigo ganhou mais força e se espalhou de forma silenciosa dentro e fora das arquibancadas. De repente, torcedores, que nem são de organizadas, buscam rivais disfarçados nas arquibancadas para agredi-los. Técnicos profissionais juram nunca treinar o rival, modificando inclusive o real sentido da lealdade.

Ex-jogadores que mantêm comércio, expõem, na fachada das lojas, fotos deles ao lado de adversário, cobrindo o símbolo dos rivais e, em cima dele, colocando o da seleção brasileira. Até nas ruas próximas dos clubes, na prática, as pessoas não podem andar com a camisa de outros times, sob o risco de que os olhares acusadores vindos de torcedores nos bares se transformem em agressão.

Atualmente, é proibida, na prática, em quase todos os clubes de futebol, a entrada de visitantes e sócios que, mesmo de uma maneira pacífica e amistosa, vistam camisas de outras agremiações. Em muitos deles isso era possível nos anos 80. Alguns, como por exemplo Flamengo, Fluminense, São Paulo, Ponte Preta e Guarani, inseriram essa proibição em seus estatutos. Na Ponte Preta está proibida, inclusive, a manifestação em favor de qualquer outro clube, dentro de suas dependências.

“Dentro das unidades sociais e esportivas fica vedado ao associado a manifestação, sob qualquer espécie, de preferência por outra entidade esportiva, inclusive a utilização de uniforme ou trajes esportivos”, informa um trecho do capítulo 5, artigo 96 do estatuto da Ponte Preta. A proibição nos clubes aparece em artigos que, curiosamente, costumam estar abaixo de outros nos quais o estatutos proclamam que, entre as missões das entidades está a de educar e orientar seus associados a entenderem o sentido de convivência e consciência cívica.

Esse tipo de proibição tem se tornado comum e já aceito por muitos como um direito, pelo fato de se tratarem de entidades privadas. No entanto, isto pode ser visto como inconstitucional, na opinião de muitos especialistas, como o advogado João Ibaixe Jr. Ele ressalta que tal regra não está prevista no Estatuto do Torcedor.

“Sobre este tema, primeiramente, o Estatuto do Torcedor deveria ser a lei mais adequada para normatizá-lo e nele não se encontra nenhum dispositivo que autorize os clubes a tomar qualquer atitude desta natureza”, observa Ibaixe Jr., entre outros, presidente da Comissão de Acompanhamento de Inquéritos da OAB-SP e especialista em Direito Penal.

Para o advogado, a própria essência dos clubes é colocada em xeque com essa norma. Impedir um adversário de entrar em suas dependências, neste caso, é diferente de exigir trajes sociais em uma festa, por exemplo. Ou uniforme dos funcionários em uma empresa e de alunos em uma escola. No caso do torcedor, o traje indica uma identidade, há um caráter excludente no ato de proibir a sua entrada. Não se trata de simples padronização relacionada à etiqueta social.

“Não há também qualquer argumento sólido que sustente tal posição, porque um clube desportivo deve ser um local onde, além da prática do respectivo esporte, busque-se integração social, afinal o desporto é uma atividade posta a desenvolver qualidades ligadas à cidadania, à urbanidade e a uma convivência pacífica e civilizada”, ressalta.

Guardadas as proporções, em 2016, o Estado Islâmico também determinou a proibição do uso de camisas de futebol na Síria, em função de, na visão do grupo terrorista, o futebol promover o “desrespeito à ordem”. A pena para quem desrespeitasse era de 80 chibatadas. Ibaixe Jr. explica, por fim, o porquê de a proibição de camisas adversárias em clubes no Brasil poder ser considerada ilegal. “Ao meu ver, a conduta fere os objetivos que deve ter uma associação desportiva e, por este aspecto, pode-se dizer que, ao cultivar, ou manter como justificativa, antagonismos, estaria sendo ferido o princípio elementar associativo, que é o de dar vigor e reforço ao núcleo democrático da ordem estatal. Neste aspecto, pode-se pensar a conduta como inconstitucional”, completa.

Para a advogada Segal, a determinação destes clubes pode até se encaixar em uma tentativa de evitar brigas e promover a paz social. No entanto, os especialistas costumam repetir que a Constituição é um marco civilizatório e, salvo exceções como estados de emergência, não tem a função de se curvar à intolerância e à violência. Neste caso, haveria outras maneiras de impedir agressões, como a própria postura da diretoria em favor da convivência.

“A maneira de um indivíduo se trajar faz parte do conjunto de suas particularidades, compondo a totalidade de sua pessoa. Entendo que impedir uma pessoa de vestir uma camiseta porque a estampa de um time não o agrada ou porque pode supostamente incitar a ira da torcida contrária é tema de debate constitucional, pois pode significar supressão da liberdade individual”, observa Segal.

Segundo ela, o veto se torna ainda mais questionável quando a proibição inclui a loja do clube. “O caso se agrava quando, também numa loja de um determinado clube, esta pessoa fica impedida de entrar ou consumir, tendo em vista que o consumidor é constitucionalmente protegido também, com legislações que defendem seus direitos. Isso só acresce a possibilidade de questionamento”, ressalta.

QUESTÕES PSICOLÓGICAS

Na busca de entender a intolerância às diferenças no futebol, o psicanalista Horácio Goes Amici se baseia nas teorias de Melanie Klein (1882-1960), psicanalista austríaca, pós-freudiana. À sua maneira, Klein coloca muitas posturas adultas como consequências de vivências nos primeiros anos de vida.

Em uma delas, de acordo com o tipo de vivência, o mundo se torna ameaçador e perigoso, feito de inimigos. Em outra, a partir de uma relação mais saudável com a mãe (ou responsável), tudo passa a ser visto de maneira mais compreensiva, pacífica, agregadora.

“A pessoa que vivenciou a separação (posição esquizo-paranoide) é marcada por uma percepção de um mundo externo hostil, em que haveria o predomínio de impulsos destrutivos e ansiedades persecutórias. Neste cenário, contextos que nos angustiam e nos fragilizam tendem a nos levar para vivências que fazem tudo ser visto de forma mais visceral, a partir de uma lógica ‘tudo ou nada’, ‘amo ou odeio’, em que as rivalidades e as diferenças se exacerbam e se tornam muito intensas”, diz Amici, formado em psicologia pela USP.

Dependendo da maneira que prevalece na vida adulta, segundo Amici, pode-se ver o rival como “o mal”. “Essa reprodução, da lógica separada, pelas autoridades dos clubes (separar os times, deixar os elementos que representam diferenças sem contato um com o outro) tende a manter os sujeitos nessa lógica de separação, não permitindo que se vislumbre, apesar das rivalidades e diferenças, a possibilidade de sustentar o estar junto com o outro”, afirma.

Amici, ainda, prossegue. “Só é possível haver convivência com um outro que represente uma diferença se o sujeito está em um contexto que permita que ele viva essas ambiguidades. Em um contexto de polarizações e crises, dentro e fora do futebol, talvez esse seja um lugar difícil de se construir, tanto no âmbito individual quanto coletivo e institucional”.

Para o psicanalista, muitas vezes o sentido lúdico de rivalidade é distorcido no Brasil, justamente em função do atual contexto social e educacional do País. “Vivemos no Brasil um período histórico marcado por crises muito importantes (econômica, sanitária, política), momentos em que as pessoas se veem mais fragilizadas e sentem-se menos seguras, o que talvez nos ajude a entender por que estamos vivemos tempos em que as leituras de mundo estão tão afastadas”, completa.

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