João Havelange - Meu Herói, Meu Bandido

A verdadeira história de um dos maiores dirigentes da história mundial. Três Olimpíadas, tricampeão do mundo e maior presidente da FIFA

A verdadeira história de um dos maiores dirigentes da história mundial. Três Olimpíadas, tricampeão do mundo e maior presidente da FIFA

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“VOCÊ FOI MEU HERÓI, MEU BANDIDO”.

(Fábio Jr.)

Há três maneiras de sintetizar a trajetória de Jean Marie Faustin Goedfroid Havelange, o esportista e o dirigente esportivo, falecido hoje, 16 de agosto, aos 100 anos, 3 meses e 8 dias de idade no Rio de Janeiro, a cidade onde nasceu.

A primeira, pela qual os mais jovens e pouco lidos devem se lembrar é a de que ele foi um cartola corrupto afastado da Presidência de Honra da FIFA, quando já não exercia mais nenhuma atividade na entidade, em 2011.

Um ano antes, Havelange também pedira compulsoriamente demissão de seu cargo no COI (Comitê Olímpico Internacional).

João Havelange: atleta, empresário e um dos maiores dirigentes esportivos do Mundo

João Havelange: atleta, empresário e um dos maiores dirigentes esportivos do Mundo

Ambos os afastamentos teriam sido a saída encontrada para livrá-lo de um processo sobre corrupção no esporte, iniciado na verdade pelo FBI norte-americano.

Processo que causou a queda em cascata do presidente da FIFA, de candidatos a Presidente da FIFA, do presidente da Conmebol e do presidente da CBF, José Maria Marin. Além de deixar o atual da CBF, Marco Polo Del Nero, na situação ridícula de não poder colocar o nariz fora das fronteiras do Brasil.

Seria o caso de se anotar também as denúncias do jornalista auto-intitulado “investigative”, Andrew Jennings, um escocês radicado na Inglaterra, que em seu livro, Foull de Secret World of FIFA, sem nenhum pudor, além de mirar e atirar em Havelange conclui que “a corrupção no futebol nasceu no Brasil”.

Como frase de efeito e publicitária é forte:

“A corrupção no futebol nasceu no Brasil’.

Talvez, Jennings, além de detetive amador, pudesse ter se aventurado também como redator de nomes de filmes de longa-metragem, já que parece ter dom para chamar a atenção com títulos e slogans de quinta.

Mas é no mínimo interessante notar que ao afirmar que a corrupção no futebol nasceu em nosso país, um “pesquisador” tão dedicado como Jennings não tenha se lembrado de mencionar a Copa do Mundo de 1966, realizada na Inglaterra, praticamente sua casa, e que foi profícua de irregularidades.

Nesta Copa, como se sabe, preparada para a Inglaterra ser campeã – aliás, a única conquista da Inglaterra em quase 100 anos do torneio (a primeira Copa do Mundo, recorde-se, foi em 1930) – ocorreu um lance que se tornou anedótico com o gol inexistente da Inglaterra contra a Alemanha na partida final, em sua prorrogação.

No comando da Fifa de 1974 até 1998, Havelange mudou a história da Fifa pelos cinco cantos do Mundo

No comando da Fifa de 1974 até 1998, Havelange mudou a história da Fifa pelos cinco cantos do Mundo

O juiz era suíço, Gottfried, onde fica a sede da FIFA e de onde o presidente da mesma opera.

Mas houve também o jogo entre Portugal e Brasil, no qual Pelé, o nosso Pelé, foi caçado literalmente pelo quarto-zagueiro português Vicente, numa sequência de lances dos mais selvagens já visto numa Copa.

O Brasil era então bicampeão do mundo e seria realmente uma desfaçatez para os ingleses que conquistássemos ali, no antigo estádio de Wembley, em definitivo, a Taça Jules Rimet.

Sabem a nacionalidade do trio de arbitragem, como se dizia, antigamente daquela partida, Brasil versus Portugal?

Vamos lá, primeiro os nomes: George Mcabe, o árbitro; Leo Callaghan e Kenneth Dgmall, os bandeirinhas. O país de nascimento e atuação dos mesmos? Inglaterra.

Claro, mera coincidência.

E quem era o presidente da FIFA em 1966? Sir Stanley Rous. Por acaso, inglês também. E ex-árbitro de futebol profissional, o que, com certeza, poucos sabem.

A corrupção no futebol nasceu no Brasil e com Havelange comandando a FIFA, acusa Jennings.

O curioso é que em 1966, Havelange nem sonhava em se candidatar a presidente da entidade, dominada por senhores britânicos, como o jornalista. Sem falar na International Board, também inglesa, sediada em solo britânico, que definia as regras do jogo.

“Esquecido que é, por falar em corrupção e seus países de origem a primeira reportagem “investigativa” de Jennings sobre corrupção no esporte abordou falcatruas na Federação de Natação Inglesa.

Donde deve-se concluir, seguindo a linha de pensamento do detetive-jornalista que a corrupção na natação nasceu, onde? Na Inglaterra, ora.

Antes de se dedicar ao campo esportivo, Jennings também escreveu sobre corrupção na Scotland Yard? Sim, aquela mesma da Rainha e de James Bond.

Tentou emplacar o trabalho na BBC, mas foi rechaçado. E conseguiu veiculá-lo numa TV paralela, tipo ESPN Brasil.

Parabéns.

O estranho é que Jennings não tenha se preocupado até hoje em escrever sobre os russos de fortunas suspeitíssimas radicados em Londres. E, coincidentemente, atuando onde? Ora, fortemente no futebol inglês, assunto tão caro e próximo a Jennings.

Até Boris Berezovsky, procurado pela Interpol, estava lá até recentemente, com seu braço direito Kia Joarabchian, hoje em dia super atuante como empresário de futebol na Inglaterra.

Esclareça-se o até recentemente no caso de Berezovsky, pois o mesmo acabou assassinado há alguns anos por envenenamento.

Mas segundo Jennings, a corrupção no futebol primordialmente não é coisa inglesa, é brasileira.

A degradação do esporte olímpico com o governo russo envolvido até a medula nos casos de doping de todos – eu disse todos – os esportes olímpicos do país soviético também deve ser coisa de brasileiros que se mudaram para lá. Sim, porque para britânicos, como Jennings, os russos são intocáveis.

Voltemos ao Havelange corrupto. Restaria lembrarmos mais dois fatos.

O primeiro de que o pai de Havelnage, belga, instalou-se no Rio de Janeiro e fez fortuna com a venda de armas, como representante de um fabricante europeu. Armas com importações legais, vendidas a particulares e ao Governo.

Formado em direito, falando perfeitamente o dialeto belga e francês, com a morte do pai, a empresa-matriz ofereceu ao filho, a continuidade do negócio. Não há um só registro de que Havelange tenha se dedicado ao ramo do progenitor.

E costumava dizer que detestava armas, sem nunca ter possuído nenhuma.

Mas este estigma o acompanhou por toda a vida.

Foi acusado de quando presidente da FIFA ter intermediado a venda de armamentos a chefes de governo que conhecera via futebol. Ele sempre negou. As reportagens publicadas a respeito não trazem provas, mas não duvido que possam existir.

Sem aceitar a oferta dos belgas, dedicou-se a uma atividade completamente diversa do pai, a de transporte interestadual de passageiros e foi presidente e um dos donos da Viação Cometa.

Viação Cometa impulsionou a fortuna de João Havelange, um dirigente arrojado e que fez história
Viação Cometa impulsionou a fortuna de João Havelange, um dirigente arrojado e que fez história

Após a morte do pai, inclusive, Havelange muda-se do Rio de Janeiro para São Paulo, residindo no bairro do Jabaquara. E é neste período (a partir de 1948, quando ele fixa residência na Pauliceia) que a Viação Cometa experimenta os seus anos de maior crescimento, tornando-se a maior e mais rentável empresa do setor.

Havelange já era um homem rico quando teve sua primeira experiência como dirigente esportivo, na Federação Paulista de Natação.

Apesar de ser sempre identificado como carioca, Havelange tinha uma afeição especial por São Paulo, o que praticamente ninguém sabia.

“Foi aqui que minha vida empresarial deslanchou e que comecei a longa jornada como dirigente esportivo que me levaria à FIFA.

“Além disso, nadei – e muito – no Rio Tietê, participando da famosa travessia, quando as águas anda não estavam poluídas”, ele me declarou em gravação, para sua biografia. E me forneceu fotos da época, onde aparece como campeão da disputa, numa solenidade onde hoje está a Ponte as Bandeiras. Ainda não havia as marginais.

Bem, creio que estes são os pontos principais dos ataques que Havelange sofreu como personalidade publica que era.

Neste campo não se pode esquecer também da relação muito criticada com a marca alemã Adidas, que passou a patrocinar a FIFA depois que ele se tornou presidente.

Ocorre que até a Copa da Alemanha, as próprias seleções nacionais pagavam, isto mesmo, pagavam para jogar a Copa.

Na Copa seguinte, da Argentina, na da Espanha, na do México, com Havelange na presidência da FIFA, as seleções não pagavam mais para jogar. Ao contrário, recebiam da FIFA para tal. Na dos Estados Unidos em 1994, até 600 mil dólares por partida!

Um mudança razoável, convenhamos.

Foi a introdução dos patrocínios na FIFA que permitiu a mudança.

Mas como disse a principio, há outras duas análises que se pode fazer a respeito de Havelange.

A primeira, como esportista.

Muitos desinformados disseram e escreveram ao longo dos anos que Havelange não tinha familiaridade com o futebol, antes de chegar à CBD (Confederação Brasileira de Desportos), que englobava o futebol profissional.

Bullshit.

O engraçado é que aqueles que costumavam afirmar isso sobre Havelange são incapazes e sempre foram de bater três vezes seguidas numa bola, fazendo embaixada. Mas nunca se abstiveram de comentar o esporte.

Torcedor do Fluminense, Havelange jogou, sim, futebol, como a maioria de nós, brasileiros. Só que não era ruim, não. Foi campeão estadual na categoria juvenil, pelo tricolor das Laranjeiras, em 1931. Suas fotos, para provar, estão na galeria do clube.

Como tinha porte atlético e praticava todos os esportes, também teve sucesso na natação, que ele adorava.

Como nadador e do polo aquático ele disputou 3 Olimpíadas

Como nadador e do polo aquático ele disputou 3 Olimpíadas

O que o levou simplesmente a disputar nada menos que 3 Olimpíadas como atleta, representando o Brasil.

Berlim, na natação em 1936, polo aquático, onde era considerado craque e titular absoluto do time, em Helsinque, 1952; e também Melbourne, 1956.

Há pouquíssimos atletas nacionais que disputaram três Olimpíadas.

Havelange ainda deu azar: estava na sua melhor forma nos Jogos que seriam realizados em 1940 e 1944 e não o foram pela eclosão da II Guerra Mundial, em 1939.

Tanto é verdade que quando a Olimpíada voltou a ser realizada em 1952, ele estava a postos na Finlândia.

Sem o intervalo da guerra Havelange poderia ter participado de, nada menos que 5 olimpíadas, um recorde único.

Ele foi também vice-campeão de polo aquático no Pan-Americano de 1955.

Tá bom como currículo de esportista.

Agora, como dirigente.

Havelange chega à CBD, que comandava o futebol no país em 1956 e deixa a entidade, já com o nome mudado para CBF, em 1974.

Neste período participou como presidente de 4 Copas do Mundo (na de 1974 já estava licenciado, fazendo sua campanha para a FIFA).

Das 4 Copas que o Brasil disputou sob sua presidência, o Brasil ganhou 3. Incontestes. Sem bola que não entrou, sem gol de mão. Ou seja, com 75% de sucesso.

O Brasil foi tricampeão do mundo em sua administração e ganhou em definitivo a Coupe Jules Rimet tem 1970.

Sua eleição durante a Copa da Alemanha em 1974 representou uma renovação na FIFA.

Nunca antes nem depois de Havelange, um dirigente não europeu chegou a presidente da FIFA.

Numa frase a respeito de sua gestão:

Havelange inventou o Marketing no futebol.

Ele multiplicou o número de filiados.

A FIFA passou a ter mais países em seus quadros do que a ONU.

Dando status ao cargo, Havelange era recebido como chefe de estado.

Incluiu a África, toda a África, no cenário do futebol mundial.

Fechou um contrato com a Coca-Cola que abriu escolinhas em vários países africanos.

Mas também foi ousado no Primeiro Mundo.

Realizou uma Copa do Mundo nos Estados Unidos quando todos diziam que se corria um risco grande de fracasso. Foi um sucesso.

Quando a Colômbia desistiu de realizar a Copa do Mundo em 1986 a menos de dois anos do evento, prospectou patrocinadores que bancaram a segunda Copa do Mundo do México.

Criou o Campeonato Mundial nas categorias Sub 17 e Sub 20. E a Copa do Mundo do futebol feminino.

Ampliou o número de participantes de uma Copa do Mundo de 16 para 32 participantes.

Mudou completamente o modelo de futebol como business. Abriu as portas e o caminho para que os clubes pudessem desenvolver seus próprios planos de patrocínio.

Tornou o futebol, de fato, o esporte mais popular do mundo.

Quando afirmei parágrafos atrás que ele tinha, intimamente, um respeito e uma admiração por São Paulo, muitos devem ter se surpreendido.

Por isso, penso ser oportuno relembrar uma passagem que se tornou vital para o futuro do futebol brasileiro.

Uma decisão que nos fez respeitados e nos livrarmos do “complexo de vira-lata”, de que reclamou um dia Nelson Rodrigues.

Em 1957, na primeira Copa do Mundo que o Brasil disputaria sob a presidência de Havelange e se preparava para disputar as eliminatórias do certame a ser realizado na Suécia, Havelange deslocou-se do Rio para São Paulo e aqui fez uma reunião histórica com um empresário do setor de comunicação.

Era Paulo Machado de Carvalho, dirigente ligado ao São Paulo Futebol Clube, onde tinha sido diretor de futebol e proprietário das Emissoras Unidas (Rádios Record, Panamericana e São Paulo) e a TV Record.

Mas Havelange queria mesmo era o Paulo Machado de Carvalho homem do futebol.

Se quisesse apoio de um homem de comunicação teria procurado Edmundo Monteiro, presidente das Emissoras Associadas (Rádio Cultura, Rádio Tupi, Rádio Difusora, Jornais Diário da Noite, Diário de São Paulo, nada menos que duas emissora de TV: Tupi, Canal 4 e TV Cultura, Canal 2), portanto muito mais forte e influente do que as Emissoras Unidas de Carvalho.

Além do que as Associadas era nacionais, com jornais, revistas, emissoras de rádio e TV no Brasil inteiro.

As Unidas eram paulistas. Só.

Havelange simplesmente convenceu Paulo Machado de Carvalho a assumir o comando da Seleção Brasileira. Com carta branca total.

A imprensa carioca, com o Rio então capital do país, bairrista, urrou. Havelange a enfrentou.

Paulo Machado de Carvalho impôs uma condição para aceitar, além de completa autonomia.

Iria pedir a três jornalistas esportivos (surpreso?) que preparassem um plano de trabalho, que seria seguido à risca.

Os três jornalistas eram paulistas e trabalhavam em órgãos de imprensa de São Paulo.

Havelange também topou. Sem restrições.

E assim Ary Silva, jornalista negro (quantos temos mesmo hoje em dia?) Flávio Iazetti, de A Gazeta Esportiva e Paulo Planet Buarque. Somente este último trabalhava na Record.

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Todos os três respeitados e absolutamente independentes. O Plano da Vitória foi seguido ipsis litteris.

O resultado todos sabem: o Brasil foi campeão do Mundo na Suécia e depois, com Paulo Machado de Carvalho, outra vez no comando, bicampeões do mundo no Chile.

Irônico.

Havelange em que tanto bateram jornalistas esportivos, foi o único dirigente que conheço que aceitou um plano elaborado por jornalistas e o cumpriu.

Paulo Planet Buarque, Flávio Iazetti e Ary Silva, de um lado.

Andrew Jennings, de outro.

Sou muito mais Planet, Iazetti e Silva.

Ai porque Jennings, como bom escocês é chegado a um puro malte.

E Ruy Castro, que dispensa apresentações e é, entre coisas o maior biógrafo brasileiro nos ensinou:

Não se deve confiar em quem escreve e é chegado numa manguaça.