Gestão de crise no futebol brasileiro deixa de lado as questões humanas
"Fico aliviada porque consegui reverter as injustiças contra o meu pai e mostrar tudo de bom que ele fez. Essa luta, porém, é para todas as gerações. Meu objetivo é contribuir para que esse tipo de situação não se repita'' - diz Tereza Borba
Tereza Borba, filha do ex-goleiro, Barbosa, fala sobre injustiças e gestão de crise no futebol brasileiro
Campinas, SP, 21 – O maior orgulho de Tereza Borba em sua vida foi ter conseguido, com uma luta obstinada, desfazer a injustiça sobre seu pai, o goleiro Barbosa, titular da seleção brasileira na Copa de 1950. Seus olhos ganham luz especial e o tom de sua voz se avoluma ao falar dos feitos dele, que a adotou após encerrar a carreira. O gol de Ghiggia, na vitória do Uruguai, se tornou um detalhe sem tanta importância.
Durante décadas, no entanto, não foi assim. Barbosa foi por muito tempo visto como culpado pelo fracasso do Brasil e mudou de cidade diante dos olhares acusatórios. Até a luta de Tereza, que iniciou uma campanha, com entrevistas, exposições e debates sobre o tema, surtir efeito.
Foi ela a melhor gestora da crise do pai, em um momento no qual Barbosa se viu abandonado. Mas, além de sua carreira vitoriosa, com títulos pelo Vasco e pela seleção, o goleiro teve a função de trazer à tona o lado ingrato e antiético do futebol, resultante também da precária gestão de crise que ainda assola o futebol no País. Quando o assunto não é jogado para debaixo do tapete, ele é abandonado pelos clubes, como aconteceu com Barbosa.
Mesmo com todo o seu esforço, Tereza considera que seu trabalho está incompleto quando ela vê novos ‘Barbosas’ sendo considerados bodes expiatórios no futebol. “Fico aliviada porque consegui reverter as injustiças contra o meu pai e mostrar tudo de bom que ele fez. Essa luta, porém, é para todas as gerações. Meu objetivo é contribuir para que esse tipo de situação não se repita”, diz. “Que a opinião pública, torcedores e imprensa olhem os jogadores como seres humanos. Como alguém que batalha, treina, dá o sangue no dia a dia. Isso não pode ser derrubado por um ou outro resultado de jogo. Essa busca por um bode expiatório tem de acabar.”
FUTEBOL NO DIVÃ
A conhecida frase “ética é coisa para filósofos” parece ganhar cada vez mais espaço no ambiente futebolístico. O Estadão entrevistou um filósofo, uma psicanalista e um sociólogo, em busca de explicações sobre o porquê da gestão humana, desde aqueles tempos de Barbosa, não ser prioritária. Atualmente, de nove dos dez clubes de maior torcida no País (Flamengo, Corinthians, São Paulo, Palmeiras, Grêmio, Atlético-MG, Santos e Inter) apenas três têm uma psicóloga, segundo informações dos sites oficiais. E, mesmo assim, elas são apresentadas (com exceção do São Paulo) nos últimos lugares dentro da comissão técnica.
Para o filósofo Sidney Molina, bacharel em Filosofia pela USP e doutor em Semiótica pela PUC-SP, tudo começa com a falta de uma compreensão mais profunda sobre a importância cultural e artística do futebol para o Brasil. “A competição esportiva tem de ser entendida dentro de um arcabouço ético, de regras aceitas por todos e que não podem ser negadas se o resultado do time no jogo não for o esperado. Além disso, jogadores e dirigentes nem sempre se dão conta do elemento estético do futebol, da arte do jogo, e de como isso é importante culturalmente para o Brasil”, diz. “A arte do futebol está próxima, no imaginário brasileiro, da música, do teatro, da dança. Jogadores também são artistas”, afirma, citando os exemplos de Sócrates e Tostão e elogiando a postura do palmeirense Gustavo Scarpa, adepto dos clássicos da literatura universal.
Os tempos atuais são outros em relação aos anos 50, quando os gastos com futebol eram menores. Só em despesas, o Flamengo deverá desembolsar R$ 611 milhões neste ano. A do Atlético-MG está projetada em R$ 447 milhões. O Corinthians prevê gastos de R$ 440 milhões. Os clubes se profissionalizaram, contratam jogadores com altos salários e foram buscar técnicos estrangeiros a peso de ouro. Os CTs com infraestrutura se proliferam. Há nutricionistas, podólogos, hospedagens em hotéis de luxo. Mas o ser humano, o jogador como pessoa, esse ainda está no fim da fila.
Diante da dificuldade em priorizar o lado humano, todo esse aparato desmorona em qualquer desavença, discussão ou problema que necessite de diálogo e compreensão. O clube não consegue lidar com vaidades. E não evita que o ambiente futebolístico se assemelhe à “Alegoria da Caverna”, proposta pelo filósofo Platão no livro 7 da obra A República, conforme relata Molina. Nesta passagem, os homens que vivem em cavernas observam apenas as sombras locais, projetadas por uma fogueira atrás deles, e acreditam que aquela é a realidade do mundo.
“Para o futebol, essa história é o lembrete de que pode haver uma visão mais abrangente da realidade, além das aparências. O jogo não se reduz apenas ao resultado, e o próprio futebol integra uma realidade maior, mais ampla, real e concreta. Vencer a irracionalidade das aparências implica coragem, insistência e uma busca sempre maior pela compreensão. Implica renunciar a preconceitos e lutar pela verdade”, observa Molina.
“Desconstruir as estruturas do futebol significa deslocar um pouco os seus sentidos para além do maniqueísmo da mera posição do clube na tabela”, prossegue o filósofo. “É preciso pensar na formação humanística dos jogadores e dirigentes, na defesa de valores humanos universais pelos clubes, numa mensagem clara que possa contaminar e desconstruir igualmente o estereótipo do torcedor como alguém que apenas reage grosseiramente – e às vezes com agressividade – aos resultados mais imediatos.”
A imprensa, diz, tem importante função no trabalho de informação, mas ao mesmo tempo de conscientização. “Cabe a ela tanto comentar com propriedade a arte do jogo como ajudar o meio do futebol a pensar sobre si mesmo, discutir seus desafios e, enfim, ajudá-lo a se reinventar.”
CRISES
No futebol brasileiro, o que se tem visto com frequência são crises se multiplicando diariamente. Pequenas, médias e grandes. Principalmente quando os resultados esperados não chegam. No primeiro problema, uma fala que desagrada, apupos da torcida, uma sequência ruim ou crítica da imprensa, toda a infraestrutura milionária perde a força.
Problemas relacionados com o lado humano não são resolvidos. Jogadores são afastados, técnicos demitidos com pouco tempo de trabalho, torcedores se sentem no direito e têm facilidade em invadir CTs. Há poucos gestores capazes de dar soluções.
Exemplos não faltam. O meia Luan, do Corinthians, se tornou um incômodo ao clube por não ter conseguido render como era esperado. O Flamengo gastou R$ 22 milhões em menos de dois anos, pagando pela rescisão dos seus quatro últimos técnicos. O treinador Fábio Carille ficou apenas 21 dias no Athletico-PR. Gabriel Menino, do Palmeiras, cujo início foi promissor, busca recuperar o terreno após perder espaço com dificuldades que, aparentemente, foram mal resolvidas. Assim como a polêmica entre o goleiro Diego Alves e o treinador Paulo Sousa, antes de o técnico ser demitido da Gávea.
Diante de uma pressão desumana, técnicos são contratados e demitidos, alguns deles mesmo com mais de 70% de aproveitamento, como no caso de Renato Gaúcho no Flamengo.
Como uma das soluções, a psicanalista Ana Paula Soares Motta defende que a psicologia no futebol seja direcionada para o lado individual de atletas e dirigentes e não somente aos aspectos motivacionais. “O atendimento individualizado ajudaria o atleta a desenvolver a capacidade da observação de si por meio de sessões de terapia. Uma importante solução seria investir em acompanhamento psicanalítico semanal e individual para atletas e famílias. A exposição para eles é gigantesca e pode causar pressões desnecessárias”, diz.
Para a psicanalista, no atual modelo, pode-se dizer que o futebol brasileiro tem sofrido de uma neurose crônica. “Vemos técnicos e jogadores chegando com grandes poderes e quando apresentam maus resultados são abandonados e expostos. Boa parte do futebol está neurótica, considerando que as neuroses são fenômenos gerados por um conflito psíquico, que envolve a frustração de um impulso instintivo. Além disso, a neurose pode ser também o resultado de nossas experiências traumáticas”, diz.
Ela acredita que a situação do futebol brasileiro se encaixa às teorias de Sigmund Freud da obra O Mal-estar da Civilização. Motta conta que, neste livro, Freud investiga as origens da infelicidade, o conflito entre indivíduo e sociedade e suas diferentes configurações na vida civilizada, inclusive entre aqueles que fazem sucesso e detêm certo poder financeiro. “Podemos ver dentro do futebol de forma forte o domínio do dinheiro e do poder. É extremamente importante que quem faz parte desse mundo esteja emocional e psicologicamente apto para lidar com tais situações ou então será dominado e fadado a viver somente para isso, passando por cima de questões tão importantes como a saúde mental e colocando em risco também a saúde física, tanto do indivíduo quanto da sua rede de convívio”, ressalta.
LADO SOCIAL
Opinião semelhante tem o sociólogo Rafael Mantovani, doutor pela USP e professor na UFSC, de Santa Catarina. Para ele, aqueles que estão inseridos no meio futebolístico dão a impressão de pensarem que estão em uma sociedade à parte. “O futebol aparece como se fosse um campo autônomo da sociedade, provavelmente pelo dinheiro que movimenta, como se não precisasse compartilhar dos valores de boa parte dela. É como se a capacidade financeira que o futebol possui dispensasse dirigentes, técnicos e jogadores das condutas éticas e, por isso, pudessem ter a sua própria. Ou – o que resulta no mesmo – podem escolher pelas práticas mais selvagens do mercado sem nenhum constrangimento”, diz. “Atletas e dirigentes poderiam se beneficiar de uma formação complementar em filosofia e estética”, indica Molina.
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