Gênio da globalização se chama Domingos da Guia
Globalização no Futebol aconteceu entre o Rio de Janeiro e as duas metrópoles do Rio da Prata. Domingos da Guia foi tricampeão por clubes de diferentes países.
Copa do Mundo no Qatar passou de junho e julho, meses tradicionais dos mundiais desde 1930, para novembro e dezembro deste 2022.
Por Albino Castro
São Paulo, SP, 7 (AFI) – A globalização tornou capaz a realização de uma Copa do Mundo num minúsculo emirado, ou seja, um principado, de nome Qatar, nação do universo de povos de língua árabe. Inclusive, por causa do sufocante calor no Golfo Pérsico no meio do ano, alterou-se o calendário da competição – passando de junho e julho, meses tradicionais dos mundiais desde 1930, para novembro e dezembro deste 2022.
A globalização, propriamente dita, teve início, a rigor, com o Império Romano que, no começo do Primeiro Milênio da Era Comum, unificou os povos do Mediterrâneo, de Atenas a Jerusalém, e de grande parte da Europa – da Romênia, nos Bálcãs, à Península Ibérica.
A globalização planetária, contudo, só se daria, como conhecemos, a partir do século XV, com a fantástica expansão marítima do Reino de Portugal – ao alcançar, a bordo de suas intrépidas caravelas, toda a costa das Áfricas, do Atlântico ao Oceano Índico, e chegar à Índia com o Almirante Vasco da Gama (1469 – 1524).
Os valorosos lusitanos levariam suas naus também à Malásia, Indonésia, China e Japão – fundando cidades importantes em cada um daqueles países.
Como Malaca, na Malásia, Díli, em Timor Leste, Macau, na China, e Nagasaki, no Japão. Criariam ainda o imenso Portugal das Américas, o Brasil, que, em 1822, quando deixou de ser um Reino Unido a Lisboa, compreendia um território maior do que hoje – do Rio Amazonas ao Rio da Prata. O Uruguai se tornaria independente em 1830 e não seríamos mais banhados pelo Rio da Prata.
PASSO INICIAL
Mas o passo inicial da globalização do futebol acabaria por se dar exatamente entre o Rio de Janeiro e as duas metrópoles do Rio da Prata – Montevidéu, fundada, aliás, pelos portugueses, e Buenos Aires. Teve como protagonista um extraordinário crack, nascido no subúrbio carioca de Bangu, o zagueiro-central Domingos da Guia (1912 – 2000), pioneiro das grandes estrelas do futebol brasileiro a conseguir a proeza de ser tricampeão, de 1933 a 1935, por clubes de três diferentes países.
Primeiro, em 1933, pelo fabuloso Nacional, de Montevidéu, base da Celeste Olímpica do Uruguai, vencedora das Olimpíadas de 1924 e 1928, e do Mundial de 1930. Depois, em 1934, ao retornar por uma temporada ao Rio de Janeiro, campeão carioca, principal competição à época no País, pelo arrebatador Vasco da Gama, que ainda usava a camisa toda negra.
CAMPEÃO NO BOCA JUNIORS
E, em 1935, conquistou o título da Argentina pelo já então legendário Boca Juniors, de Buenos Aires, que não mandava suas partidas em La Bombonera – inaugurada em 1940. Domingos ficaria no Boca Juniors até 1937. Ainda hoje, na capital uruguaia, historiadores do futebol, entre os quais, o admirável Franklin Morales, de 89 anos, destacam Domingos da Guia como o maior back central que jogou nas canchas de lá.
A mesma opinião tinha, em suas crônicas futebolísticas, o escritor Eduardo Galeano (1940 – 2015), festejado autor de “Las Venas Abiertas de América Latina”. Concordam com Morales e Galeano os argentinos Osvaldo Ardizzone (1919 – 1987) e Júlio Cesar Pasquato, o Juvenal, de 98 anos, ambos jornalistas da histórica revista “El Gráfico”, que circul ou de 1919 a 2018 e, para mim, foi a melhor publicação esportiva do mundo. Orgulho-me de ter uma preciosa coleção de “El Gráfico”.
MELHOR NO BRASIL
Também, no Brasil, Domingos da Guia é considerado, com justiça, o maior zagueiro-central que vestiu a camisa da Seleção Brasileira. Foi superior, sem dúvida, aos campeões mundiais, na sua posição, Bellini (1958), Mauro (1962), Brito (1970), Aldair (1994) e Lúcio (2002). O magistral Domingos da Guia ganhou, nos estádios, o epíteto de “O Divino Mestre” nos três países em que atuou.
E foi na volta ao Rio de Janeiro, em 1937, pelo Flamengo, que formaria o sensacional time rubro-negro ‘globalizado’, espécie de seleção de brasileiros e argentinos, conquistando, em 1939, o título carioca – tido e havido por muitos, inclusive por mim, que não os vi jogar, como o melhor Flamengo de todos os tempos. Sobressaíam-se naquela talentosa equipe o fenomenal Zizinho (1921 – 2022), o Mestre Ziza, e o inventor do gol de ‘bicicleta’, Leônidas da Silva (2013 – 2004), “O Diamante Negro”.
HERMANOS AMIGOS DELE
Ao lado deles, entre os titulares, chegaram a atuar cinco argentinos – todos amigos de Domingos da Guia e trazidos por ele de Buenos Aires: o médio-apoiador Carlos Volante (1910 – 1987), o ponta-direita Agustín Valido (1914 – 1998), o centroavante Francisco Providente, hoje, com 108 anos, o meia-esquerda Alfredo González (1915 – 1990) e o ponta-esquerda Raimundo “Mumo” Orsi (1904 – 1986) – este campeão do mundo em 1934 pela Itália. À exceção de Volante, vindo do querido Lanús, os demais eram do Boca Juniors.
Domingos da Guia permaneceria no Flamengo até 1944 – ano em que o clube da Gávea ganharia seu primeiro tricampeonato carioca. Foi aí que se mudou para São Paulo e, por quatro anos, jogou pelo Corinthians – onde conquistaria apenas o Torneio Início no ano de sua chegada e, em duas oportunidades, a Taça Cidade de São Paulo (em 1947 e 1948).
VOLTA AO BANGU
Deixaria em 1949, aos 37 anos, os então “Mosqueteiros do Parque São Jorge”, voltando a seu Bangu para encerrar a carreira em 1950. Até os nossos dias o “Divino Mestre” é lembrado nos gramados sempre que um zagueiro, ‘alla Domingos da Guia’, faz uma jogada batizada de “Domingada”, isto é, quando o defensor dá um drible a mais do que o necessário.
Um pouco como fazem atualmente diversos times europeus e, aqui, as equipes treinadas por Fernando Diniz, que está no Fluminense. Domingos da Guia jamais se permitiu dar um chutão para frente. Foi assim, atuando pela Seleção do Brasil na Copa Rio Branco contra o Uruguai, em 1932, no Estádio Centenário, de Montevidéu, que chamou a atenção dos dirigentes do Nacional.
PONTAPÉ EM PIOLA
Entretanto, por extrema ironia, deu um pontapé no centroavante italiano Silvio Piola (1913 – 1996), na semifinal da Copa do Mundo de 1938, e causou o pênalti que asseguraria à “Azzurra” a vitória por 2 a 1. A Itália seria bicampeã mundial ao derrotar, na final, a Hungria por 4 a 2. Ele defendeu o escrete brasileiro até o Sul-Americano de 1946, disputado em Buenos Aires – e nunca se interessou, ao pendurar as chuteiras, pela carreira de técnico.
Deixou, porém, como herdeiro no futebol um filho, Ademir da Guia, “O Filho do Divino”, um dos maiores craques da história do Palmeiras. Que, como o pai, começou a trajetória no Bangu – epicentro, sem dúvida, do início da globalização no futebol.