Cartolas tradicionais ainda têm espaço em meio à modernização
O movimento de mudança ainda é incipiente, o que garante espaço àqueles que chegam ao comando ancorados na ligação com o clube de coração
Campinas, SP, 20 – Apesar dos novos rumos do futebol brasileiro, com o estabelecimento das SAF (Sociedade Anônima do Futebol) e de alguns clubes estarem se voltando para a gestão profissional, inclusive com a remuneração de seus presidentes, os dirigentes à moda antiga sobrevivem. O movimento de mudança ainda é incipiente, o que garante espaço àqueles que chegam ao comando ancorados na ligação com o clube de coração.
No entanto, não basta mais apenas o “amor”. É preciso senso administrativo e conhecimento dos meandros do futebol. Ou seja, estar preparado. E, conforme o caso, ter flexibilidade para se dividir entre a presidência e as “atividades particulares”.
Andrés Rueda, presidente do Santos, optou pela dedicação total ao clube. Ele abriu mão da sua empresa para poder destinar a maior parte do seu tempo resolvendo os problemas do clube.
Matemático, Rueda tem especialização em engenharia de sistemas e, por 20 anos, foi diretor de TI na Bovespa/BM&F – em três deles acumulou a diretoria financeira e administrativa. No período, foi consultor das bolsas de Canadá, México, Madri, Barcelona e Paris.
Fundou uma empresa de projetos e sistemas, trabalhou nela por duas décadas, chegou a ter 6 mil funcionários e faturamento anual de R$ 300 milhões, mas vendeu tudo em 2019 para se dedicar de forma integral ao Santos, sua paixão. “Graças ao meu trabalho, estou financeira e familiarmente em situação tranquila, numa idade (65 anos) em que preciso aproveitar a vida, ver minhas séries, viajar… Mas resolvi me dedicar ao Santos. Quando me propus ao desafio, fiz por causa do clube”, disse Rueda ao Estadão.
“Quero as finanças equilibradas, time competitivo para disputar títulos e ter travas no seu mecanismo de governança para que não façam de novo o que fizeram com o clube. Para isso, resolvi dar a coisa mais cara que o ser humano pode dar, o tempo.”
Ao lado de mais sete nomes e do vice-presidente de futebol, Rueda toma as decisões. Sua rotina começa pontualmente às 8h30. A saída costuma ser por volta das 18h – ele leva trabalho para casa. O presidente acompanha todos os jogos na Vila e, nas partidas fora de casa, sempre há um membro do Comitê de Gestão representando a diretoria.
No Goiás, o presidente Paulo Rogério Pinheiro tomou caminho semelhante. O principal ramo de atuação dele está no negócio de transporte público. Ao todo, a família tem oito empresas e cerca de 6 mil colaboradores. Pinheiro, contudo, abriu mão de dirigir as empresas para se dedicar exclusivamente ao time esmeraldino.
A equipe da Baixada Santista e o alviverde do Centro-Oeste fazem parte dos 66% dos clubes que disputam a Série A do Brasileiro que não remuneram seus presidentes (dos 20 times, Corinthians e Athletico-PR não responderam aos questionamentos do Estadão). São eles: América-MG, Atlético-GO, Atlético-MG, Ceará, Coritiba, Flamengo, Fluminense, Inter, Juventude e Palmeiras. Três clubes, Avaí, Fortaleza e São Paulo (16,6%), informaram que pagam salários para seus comandantes e outros 16,6% (Red Bull Bragantino, Cuiabá e Botafogo) atuam com modelo diferente de gestão, a do clube-empresa.
VIDA DUPLA
O exemplo santista e do time goiano, contudo, nem sempre pode ser seguido à risca. Boa parte dos mandatários da elite do futebol brasileiro tenta conciliar o trabalho no clube com os próprios negócios. Eleita para o triênio 2022/2023/2024 no Palmeiras, a empresária Leila Pereira, 40º presidente e a primeira mulher a assumir o cargo na história do clube, dá expediente todos os dias no alviverde.
Ela busca aliar as atividades. Pessoas próximas a Leila afirmam que a disciplina é a chave do segredo para o sucesso na conciliação entre os negócios e o clube. É comum vê-la despachando documentos de suas empresas de dentro do Palmeiras. Tudo para não perder nenhum minuto dos acontecimentos do clube. Além disso, costuma ser vista em todas as partidas disputadas pelo time de Abel Ferreira.
No Rio, Flamengo e Fluminense também não dão um centavo sequer oficialmente para os seus presidentes. No time rubro-negro, Rodolfo Landim dedica grande parte de seu tempo ao time. Engenheiro civil de formação, ele ocupou diversas funções na Petrobras por 26 anos e fez carreira na área. Há algumas semanas, foi indicado pelo Ministério de Minas e Energia para presidir o Conselho de Administração da Petrobras. Não assumiu por conflito de interesses – foi conselheiro de empresas de capital aberto no exterior e de prestação de serviços da área de petróleo. E diz que sua prioridade é o Flamengo.
A situação não é diferente nas Laranjeiras. Advogado, Mário Bittencourt é dono de seu próprio escritório há mais de 15 anos no Rio. Por ser profissional liberal e chefe nas suas companhias, tem flexibilidade para harmonizar suas atividades profissionais com as funções não remuneradas de presidente do Fluminense.
Além disso, Bittencourt não costuma ir a todas as viagens do time. Nos fins de semana, é comum vê-lo com o elenco, mas no meio da semana só marca presença quando consegue acomodar a agenda. As exceções são os jogos decisivos. Nesses, ele não falta.
NOVOS TEMPOS
Diferentemente dos tempos do cartola que entrava no vestiário e até distribuía “bicho” em dinheiro, os presidentes atuais adotam posturas mais profissionais. Em Belo Horizonte, Sérgio Coelho é o responsável por assinar os documentos do Atlético-MG, atual campeão brasileiro e da Copa do Brasil.
Empresário no ramo de shoppings de automóveis, loteamentos de compra, venda e locação de imóveis, o dirigente costuma acordar às 5h para dar conta de tudo. Após uma caminhada, ele dá expediente em suas empresas na parte da manhã. O clube, contudo, está sempre no seu radar. Coelho ainda faz questão de acompanhar o time nas viagens e eventos maiores.
Em Goiânia, o desafio é semelhante para o presidente do Atlético Goianiense, Adson Batista. Ele faz o que pode para cuidar de sua companhia de loteamentos e dar a devida atenção aos temas da agremiação. “Não há uma carga horária específica. A dedicação (ao clube) é em tempo integral. Inclusive, quando não estou presente ali, as demandas são realizadas de forma remota”, explica. Ele possui participações em uma holding de postos de gasolina. Mesmo com todas as tarefas externas, diz não perder nenhum jogo.
Em Caxias, no Rio Grande do Sul, Walter Dal Zotto, mandatário do Juventude, toca seus negócios na indústria voltada para o ramo de utilidades domésticas e arquitetura. “Tenho acompanhado a empresa por relatórios e reuniões semanais por videoconferência. Tem sido uma tarefa difícil, porque o clube tem demandado tempo e esforço”, diz. Ele está em todas as movimentações do time gaúcho.
Robinson Passos de Castro e Silva preside o Ceará, mas tem várias ocupações. É formado em Ciências Contábeis e Direito pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR), tem especializações em cursos de administração financeira e contabilidade, comanda uma empresa e dirige e colabora com entidades do ramo de contabilidade e auditoria.
Ele constrói a sua própria flexibilidade para ter como prioridade as coisas do time. Considerado workaholic por pessoas próximas, costuma dizer a amigos que estar no Ceará é “uma missão de vida”.
Em Curitiba, Juarez Moraes e Silva diz que sua atividade está comprometida pela gestão no Coritiba. Ele é consultor e especialista em infraestrutura portuária e logística. Mas afirma dedicar-se em tempo integral ao clube que consome cerca de 10 a 12 horas diárias, incluindo os fins de semana. “Para dar conta, trabalho mais.”
No América-MG, o esquema é facilitado e as tarefas são bem divididas. O clube é gerido por um Conselho de Administração com cinco integrantes. O presidente é o deputado estadual Alencar da Silveira Jr. Como precisa dar expediente na Assembleia Legislativa, a missão no time acaba sendo compartilhada nas áreas de ação de cada um: institucional, futebol e finanças.
MODELO SOFRE CRÍTICAS
Uma lei sancionada em 29 de julho de 2015 pela ex-presidente Dilma Rousseff permitiu aos clubes de futebol remunerarem seus presidentes e dirigentes. Desde então, eles passaram a estudar e discutir a possibilidade de pagar a seus mandatários, prática que não existia – pelo menos não de forma oficial. Caía bem para a modernização dos clubes ter gerentes profissionais, mas muitas dessas intenções nunca saíram do papel.
Três times da Série A do Campeonato Brasileiro, no entanto, informaram ao Estadão adotar a remuneração como forma de cobrar de seus presidentes maior participação e seriedade nas atividades do clube. São eles: Avaí, Fortaleza e São Paulo.
A advogada Juliana Biolchi, diretora-geral da Biolchi Empresarial, especializada em revitalização de empresas, negociações complexas e recuperação extrajudicial, explica como funciona a lei. “Os dirigentes, incluindo o presidente, podem ser remunerados. Alguns requisitos precisam ser respeitados: o clube deve adotar a forma de associação assistencial sem fins lucrativos; o executivo deve atuar, efetivamente, na gestão executiva; a remuneração deve estar de acordo com o mercado regional e ser fixada pelo órgão deliberativo da entidade, registrada em ata”, esclarece a especialista.
No São Paulo, o presidente Julio Casares, ao ser eleito, deixou sua ocupação anterior para se dedicar exclusivamente à gestão do clube. Paulistano, ele é advogado, publicitário, professor e radialista. O dirigente já foi, em duas ocasiões, presidente da Associação Brasileira de Marketing e Negócios (ABMN) e já atuou como vice-presidente de Marketing e Comunicação do São Paulo.
O Fortaleza também remunera o cargo. Marcelo Paz, homem forte do futebol do clube, fala sobre a opção de o clube pagar salário ao presidente. “Eu tenho dedicação integral, o tempo todo estou disponível. A carga horária é até difícil de medir porque quando estamos viajando, estou 24 horas à disposição e quando estou em Fortaleza é praticamente o dia inteiro. São muitas demandas que requerem grande atenção e dedicação”, afirma Paz.
Em Santa Catarina, o Avaí, de Florianópolis, aboliu a não remuneração desde a reforma estatutária ocorrida no fim de 2021. Com isso, qualquer cargo no clube passou a ser remunerado, incluindo o do presidente, Júlio César Heerdt, e do vice, Bruno Ribeiro Comicholi, que recebem de 60% a 70% do teto do funcionalismo público.
Amir Somoggi, especialista em gestão esportiva, sócio-diretor da Sports Value, faz críticas ao modelo de gestão adotado por esses clubes. Ele acredita que os times precisam remunerar seus dirigentes de maneira mais profissional. Defende o sistema do clube-empresa.
“O modelo empresarial de remunerar dirigente não é simplesmente o de pagar o salário ao presidente, mas o de tirar o político do jogo. Quando você remunera o político, está dando mais gás para o modelo errado, que é o modelo em que o conselheiro opina e o marketing não funciona. Enquanto uma empresa vai subir de elevador porque tem investidor, tem meta, tem métrica, o clube vai de escada.”
Ele diz mais. “Esse modelo clubístico não permite que haja preocupação com o futuro. O dirigente pensa: ‘Eu não vou estar aqui em três anos. Quando estourar essa bomba, não estarei mais aqui'”, acrescenta. “O executivo quer ganhar bônus, quer traçar metas e o presidente não tem essas metas. Ele quer entrar na história, quer ser campeão. O executivo quer ter lucro também e não só ser campeão. O presidente não está preocupado com as finanças. Só que são as finanças que levam você para as vitórias e para as derrotas”, entende.
CLUBE-EMPRESA
O modelo sugerido por Somoggi como algo mais promissor é visto em, ao menos, três equipes que vão participar da Série A. Cuiabá e Botafogo atuam como SAF (Sociedade Anônima do Futebol). Além da dupla, o Bragantino já funciona como clube-empresa desde 2019, quando foi adquirido pelo Red Bull, que montou uma Ltda. (Limitada) e pagou cerca de R$ 45 milhões para firmar o negócio. “Administrar o clube como empresa sempre foi um negócio mais próximo do que a gente está acostumado”, explica Cristiano Dresch. Antes uma S/A, o Cuiabá passou a ser SAF.