Ataque a Vini Jr. expõe intolerância à criatividade e ameaça futebol bailarino
No último jogo do Real, adversários e torcedores intimidaram os jogadores
O caso de racismo contra Vini Jr. abre discussão sobre os rumos do futebol
Drible ou entrada ríspida? Gol seguido de coreografia ou intimidação escancarada? Futebol bailarino ou esquemas baseados na truculência? Diante da intolerância que ganha força nos mais variados segmentos da sociedade, as ameaças direcionadas a Vinicius Junior pelo estilo irreverente de festejar seus gols elevaram a temperatura de um clássico na Espanha que tradicionalmente já carrega grande dose de rivalidade. No jogo em que o Real Madrid venceu o Atlético de Madrid por 2 a 1, no último final de semana, o atacante não balançou a rede, mas fez questão de sambar ao lado do companheiro Rodrygo no primeiro gol do time merengue. O ato foi uma resposta às intimidações proferidas tanto pelo adversário quanto pela torcida presente ao estádio.
Além do caso de racismo explícito, o episódio abre discussão sobre os rumos que o esporte mais popular do planeta vem seguindo. Em tempos de VAR, câmeras espalhadas nos estádios e ainda a atuação muitas vezes confusa dos juízes, o futebol vem trocando as jogadas de efeito pelo pragmatismo. Regras de conduta são alçadas como pilares num esporte que tem o drible como um dos principais cartões de visita
Tricampeão do mundo com a seleção brasileira em 1970, no México, o ex-goleiro Emerson Leão foi um defensor do futebol bailarino em sua curta passagem como técnico da seleção brasileira.
Apesar do estilo sisudo, bom futebol e irreverência já caminharam harmonicamente sob os cuidados do exigente técnico que, em 2002, foi campeão brasileiro com o Santos comandando Diego e Robinho. “O Vinicius Junior tem a liberdade de comemorar seus gols como bem desejar. Não vejo o que ele faz como gozação ou menosprezo. Eu incentivava meus atletas a fazer isso. Na verdade, achei ridículo o que fizeram com o garoto”, afirmou Leão ao Estadão.
A pressão imposta pelos rivais em cima do seu estilo não deve ser levada tão a sério na opinião do treinador brasileiro. “No futebol sempre existiu jogadores irreverentes. No meu tempo, o César Maluco tirava peruca de repórter na comemoração dos gols. O Vinicius não pode perder a naturalidade”, completou o treinador.
Com mais de 900 gols na carreira e uma trajetória marcada por frases de efeito e provocação aos adversários, Dadá Maravilha exaltou a atuação de Vinicius e criticou os atletas que só conseguem visibilidade intimidando quem sabe jogar bola. “Eu dava nome e falava quantos gols iria fazer antes dos jogos. O Vinicius Junior mostrou ter coragem. É craque, coisa que eu nunca fui. Só precisa aprender a fazer mais gols como o Dadá. Aí ninguém segura. E se tiver que dançar, que dance, pois futebol é isso. Ainda mais sendo brasileiro.”
PELO DIREITO DE DRIBLAR
Berço de atletas consagrados mundialmente como Pelé, Garrincha, Romário, Ronaldo e Ronaldinho Gaúcho, o Brasil tem em seu DNA uma forte relação com o drible e o lance de efeito.
Entre o final dos anos 30 e a década de 40, Leônidas assombrou o mundo com a sua acrobática bicicleta. Quase uma década depois, Didi se tornou pai da folha seca, um jeito malicioso de cobrar faltas que fazia a bola cair repentinamente e trair o goleiro nos lances de bola parada.
E a criatividade não ficou nisso. A paradinha na cobrança de pênalti está relacionada a Pelé, que imortalizou também as tabelinhas tendo Coutinho a seu lado. Já Rivellino popularizou o drible do elástico enquanto Sócrates fez do toque de calcanhar uma artimanha marota que deixava os adversários “falando sozinho”.
E o que dizer de Mário Sérgio, jogador cerebral que se atrevia a olhar para um lado e tocar a bola para o outro? Tal ousadia lhe rendeu o apelido de “Vesgo” no mundo do futebol.
Médico e dirigente esportivo, Marco Aurélio Cunha acompanhou muitos jogos à beira do campo desde o fim dos anos 70. Segundo ele, o momento atual está transformando a essência do que estamos acostumados a ver. “O futebol é um jogo de enganar o adversário: o drible, o movimento, a ginga, o olhar, tudo isso faz com que você possa ludibriar o rival. Tem aquela coisa de tirar o adversário do sério, falar um negócio no ouvido. Hoje com as câmeras, tudo fica atrelado às regras de convivência. A consequência é que o jogo fica amarrado”, afirmou Cunha.
Praticar o politicamente correto em demasia, segundo ele, vem tirando o brilho que sempre cercou o universo de uma partida de futebol. “O drible é um menosprezo ao adversário. Não tem jeito. Essa é a essência da finta. Tanto é que quando alguém dá uma caneta, o narrador até faz uma graça. A bola entre as pernas é um recurso espetacular, mas com o politicamente correto, parece que é proibido. Dar um lençol para trás virou um absurdo. Hoje tem muita gente ditando regra da conduta adversária”, completou.
Ponta-esquerda de extrema habilidade e um dos maiores atacantes da história do São Paulo, Zé Sérgio sempre teve o drible como principal arma. De características parecidas com o atacante do Real, ele disse que a resposta do ex-flamenguista foi dada na medida certa. “Tinha mesmo que ir para dentro do marcador e mostrar o que sabe fazer. Eu e o Vinícius temos estilos parecidos e um talento como o dele não pode ficar refém de violência. Essas ameaças não podem ter espaço. Ele é um talento que não temos no Brasil hoje, por exemplo”, completou Zé Sérgio.
DOS CAMPOS PARA O APITO
O caso envolvendo Vinicius Junior também passa pela atuação da arbitragem. O Estadão ouviu o ex-juiz Sálvio Spínola Fagundes Filho sobre a questão que ganhou eco não só no Brasil, mas também na Europa e provocou manifestações de solidariedade ao atacante do Real Madrid. “Vejo o caso do Vinicius Junior como intolerância e também rigor em situações que não deveriam ser tratadas de tal modo. Acho que tem um pouco de falta de bom senso”, afirmou Sálvio, que atualmente trabalha como comentarista de arbitragem do Grupo Globo.
Ele citou dois exemplos recentes para falar da falta de critério que os árbitros adotam em campo. “O cartão amarelo dado ao Pedro Raul, na comemoração do gol contra o Bragantino (empate de 1 a 1) pelo Campeonato Brasileiro, não teve sentido nenhum. Ele apenas colocou as mãos atrás da orelha.”
Outro fato citado diz respeito a Neymar. O astro do Paris Saint-Germain também foi amarelado por fazer uma careta com as mãos próximas ao rosto após balançar as redes diante do Maccabi Haifa, em jogo da Liga dos Campeões da Europa. “A comemoração do Neymar foi para homenagear o Lela, pai do Richarlyson. São punições policialescas. Isso está tirando a possibilidade dos juízes de pensar”, completou.
A advertência fez o ex-jogador santista se manifestar pelas redes sociais. “Mais uma vitória, parabéns. Mas seguimos. Isso aí, comemoração, amarelo. Mais uma para a lista do NJ. Só comigo que acontece essas coisas. Da próxima vez vou avisar aos árbitros o que vou fazer”, postou.
CHOQUE DE CULTURAS
Muito do barulho em torno das comemorações de Vinicius Junior pode ter como resposta as diferenças culturais entre o Brasil e a Europa segundo Eduardo Cillo, psicólogo do Comitê Olímpico do Brasil (COB) e que também trabalhou em clubes como Palmeiras, Botafogo e América-MG. “O brasileiro tem como marca cultural a ginga, a irreverência que acaba se convertendo em drible. Essa jogada de efeito muitas vezes acaba em uma dancinha.”
Cillo afirma que esse jogo de cintura não é exatamente a marca de uma cultura europeia tomada como um todo. “O adversário tenta a imposição pela força, pelo grito, e isso acaba emergindo diferenças culturais importantes e perigosas beirando o racismo. Isso aconteceu também com o Neymar quando ele chegou na Europa.”
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