Argentina se mostra uma nação dividida com a má campanha na Copa do Mundo

"A situação da Argentina é tão delicada que as partidas da seleção não conseguiram fazer esquecer os temas quentes da agenda do país"

"A situação da Argentina é tão delicada que as partidas da seleção não conseguiram fazer esquecer os temas quentes da agenda do país"

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Campinas, SP, 23 – Parece exagerado. Foi uma encenação criticada por colegas e espectadores. Mas não fica muito longe do drama com o qual os argentinos vivenciam o futebol. Após a derrota da última quinta-feira da equipe nacional contra a Croácia por 3 a 0, um painel de jornalistas do TyC Sports, o canal a cabo de esportes de maior audiência no país, abriu o programa com uma proposta singular: “um minuto de silêncio”. Assim, com esse pequeno ritual, sem olhar para a câmera, “fizeram o enterro” da equipe, incluindo Lionel Messi e o treinador Jorge Sampaoli.

As duas partidas disputadas pela seleção na Copa do Mundo da Rússia suscitaram tanto esperança como mal-estar em um país que, como poucos na região, encara o futebol como uma religião de fanáticos. O empate por 1 a 1 contra a Islândia – rival subestimada no início – foi o sinal de alarme. E o descontentamento detonado com a vitória esmagadora contra a equipe europeia. É difícil procurar as razões e justificativas se a derrota for analisada a partir da visão dogmática do torcedor. Mas o resultado não é surpreendente se alguém analisar a história da Argentina nas Eliminatórias, nas quais ganhou dolorosamente uma passagem para a Rússia contra o Equador, graças ao talento de Messi.

As críticas demolidoras não foram só disparadas por jornalistas esportivos, mas também por ex-jogadores, muitos deles que já passaram pela equipe argentina. Nas últimas horas, tornou-se viral um áudio de Diego Simeone, campeão duas vezes da Copa América e atual treinador do Atlético Madrid. “O que está acontecendo com a seleção mostra o que aconteceu nos últimos quatro anos no futebol argentino: anarquia e falta de comando na liderança. A equipe está perdida. Está errado”, disse o “Cholo”.

Nesta vertigem de pegar um sabre e cortar cabeças, Héctor Enrique, ex-campeão mundial em 1986, atacou duramente o número 10 do Barcelona. “Quem diabos é o Messi para não correr? Os jogadores são crianças muito mimadas”, disse o “Negro”. E ele relembrou um duelo que os argentinos amam: Messi versus Maradona. “Diego não deixava você abaixar os braços. Corria mais do que todo mundo, ficou com mais raiva do que todo mundo, enfrentou; se batiam nele, levantava-se e seguia em frente. Essa atitude contagiava”.

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Como um afogado que dá as últimas braçadas antes de afundar, os torcedores se apegaram à partida entre Nigéria e Islândia. O triunfo dos africanos deu um pouco de oxigênio à equipe Argentina, que deve vencê-los na última partida para aspirar às oitavas de final. Nesta sexta-feira, na cidade de Buenos Aires, buzinas foram ouvidos na rua e os gols de Musa despertaram gritos lancinantes, que saíram dos edifícios da capital argentina. A partida conseguiu picos históricos de audiência para uma partida da série do Mundial na qual a Argentina não jogou.

Talvez com mais força que nunca, o país quer ganhar alguma coisa. Passaram-se 32 anos desde que a equipe venceu a última Copa do Mundo. A isso se soma a grande decepção de três finais perdidas nos últimos anos: o Mundial de 2014 contra a Alemanha e as duas últimas edições da Copa América contra o Chile. Os argentinos querem sentir-se triunfantes por um tempinho, não só por causa de seu fanatismo, mas também porque, fora do gramado, poucos motivos existem para se comemorar.

“A situação da Argentina é tão delicada que as partidas da seleção não conseguiram fazer esquecer os temas quentes da agenda do país, tais como o empréstimo do FMI, que concordou em enviar US$ 50 bilhões. A Argentina joga contra a Nigéria na terça-feira. Na segunda-feira, haverá uma greve nacional dos principais centros sindicais, que paralisará todo o país. Há um grande descontentamento social, que será transformado em protesto”, disse, ao jornal O Estado de S.Paulo, Julio Gambina, professor e especialista em economia política.

Além disso, o Instituto Nacional de Estatística e Censos (Indec) acaba de anunciar alguns números desanimadores: o desemprego cresceu no primeiro trimestre para 9,1%. Enquanto isso, as principais consultorias projetam inflação de 30% em 2018, a maior da região depois da Venezuela. Nos últimos dias, o governo comemorou – quase como um triunfo da seleção – a ascensão à categoria de “mercado emergente” de acordo com a agência de classificação de risco Morgan Stanley Capital International (MSCI). Este novo status traria novos investimentos produtivos no país.

Julio Gambina não é muito otimista. “O governo encarou isso como uma boa notícia. Mas há algo que raramente é falado. Essa condição de emergente supõe o aprofundamento da reforma trabalhista e provisões para reduzir os custos de produção”, concluiu.

Para passar de forma angustiante às oitavas de final, a Argentina deve vencer a Nigéria nesta terça-feira, em São Petersburgo. E, por sua vez, esperar que a Islândia não derrote a Croácia. Se o último acontecer, tudo será definido pela diferença de gols. Se a seleção de Messi for deixada de fora, não apenas adicionará mais um amargor a um país inteiro. Também obrigará os argentinos a acordar de uma ressaca terrível e enfrentar uma realidade na qual também não se pode vencer.