'Não criamos para chamar atenção', diz cofundador do 1º time vegano do Brasil
Criado em abril deste ano, em outubro o time vai disputar a segunda divisão do Campeonato Potiguar
O Laguna é o primeiro clube vegano da história do futebol brasileiro
O Laguna é o primeiro clube vegano da história do futebol brasileiro e tem uma meta ousada: chegar à primeira divisão nacional em dez anos. Com sede no Rio Grande do Norte, o time, que é uma Sociedade Anônima do Futebol (SAF), foi criado em abril deste ano e, em outubro, vai jogar a segunda divisão do Campeonato Potiguar.
O veganismo é um estilo de vida que contempla eliminar da sua rotina todas as formas de exploração de animais. Como um clube vegano, a proposta é evitar ao máximo alimentos ou produtos de origem animal, como itens de limpeza de marcas que testam em animais, por exemplo. Fora das dependências, os atletas não precisam seguir essas regras.
Quem lidera o Laguna com outros dois sócios é Gustavo Nabinger, de 38 anos, ex-atleta e técnico. Vegano há dois anos, segundo ele por amor aos animais, virou vegetariano em 2003 ainda como jogador e precisou contornar as dificuldades de se alimentar em clubes pequenos que não tinham uma estrutura adequada.
“Alguns times tinham uma alimentação especial, mas em outros não. Na época, eu tinha consciência que era a exceção da exceção. Hoje mudou bastante. Eu estava estudando muito o budismo, também assisti a documentários e minha consciência sobre o tema mudou”, conta ao Estadão.
Uma das sócias também é vegana, enquanto outro virou vegetariano há um mês. Desde a mudança de filosofia de vida de Gustavo, vários membros da família, que é gaúcha, se tornaram vegetarianos ou veganos.
LAGUNA
A ideia de criar um clube de futebol veio a partir de estudos durante a pandemia. O ex-jogador se debruçou sobre a parte financeira do negócio, convidou dois sócios para traçar o plano de negócios e estruturar o projeto. No momento, colocaram recursos próprios na empreitada e procuram uma primeira rodada de investimentos. As conversas com possíveis interessados também incluem empresas que não são veganas.
“Estamos discutindo e inclinados a conversar a respeito. Por exemplo, a Natura não testa em animais, mas vende produtos de origem animal e também conta com uma linha vegana. Ela está se importando para chegar onde a gente quer. Estar conectado a essa empresa pode ser um estímulo para ela investir mais nesse processo. É um ponto que precisamos levar em consideração. Debatemos muito isso com várias pessoas dentro do movimento vegano”, explica.
O Laguna fechou uma parceria com a Sociedade Vegetariana Brasileira, que engloba uma “assessoria de medidor de impacto ambiental”. Uma equipe de chef, nutricionista, fisioterapeuta, psicólogo e médico estão à disposição do clube.
“O veganismo é para evitar o consumo dentro do possível. Por exemplo, a bola nem sempre é vegana. Embora o material seja sintético, às vezes, a cola tem um componente de origem animal. Não vou chegar para a federação e falar que não vou jogar com ela. Mas entendo que, com o tempo, as coisas podem mudar e gerar impacto com as empresas buscando alternativas”, diz.
O Laguna está produzindo uniformes, mochilas e kit de higiene pessoal aos atletas – claro, tudo vegano. O elenco está montado, um campo para treino e jogos já foi alugado e uma casa foi estruturada para receber os atletas.
Durante o processo de criação do Laguna, os sócios precisaram escolher em qual estado e cidade o clube fincaria raízes. Ao lado dos sócios, Nabinger passou um ano e meio avaliando as opções. O município de Tibau do Sul, conhecido pela famosa Praia da Pipa, no Rio Grande do Norte, foi o escolhido.
“Queríamos ir a um lugar para gerar impacto. Analisamos questões mercadológicas também e, claro, de futebol. Joguei aqui no estado e adoro demais esse lugar. A nível demográfico, é interessante também e dá vantagens em termos de logística. Está próximo de várias outras capitais, de centros urbanos importantes. Avaliamos vários indicadores”, analisa.
FOCO NA BASE E PRÓXIMO À COMUNIDADE
Nabinger quer um clube diferente de outros que jogou na carreira, não apenas por práticas em defesa do meio ambiente. Seu projeto é ter uma política voltada para o fortalecimento das divisões de base, citando como exemplo a metodologia do Ajax focada na formação de jovens atletas, e uma gestão que defenda a continuidade do trabalho de técnicos e jogadores.
A visão norte-americana de entender o esporte como entretenimento, gerando conteúdo e experiência, é um dos valores que o grupo de sócios quer implementar no Laguna. Mas Nabinger também deseja uma equipe fortemente ligada a sua comunidade e em defesa de valores sociais.
“O St. Pauli, na Alemanha, joga sempre com estádio lotado, tem fã clube no mundo inteiro porque levantou bandeiras importantes. Na década de 1980, surgiu um movimento de torcidas neonazistas em clubes alemães e o St-Pauli bateu de frente. Começou a abraçar grupos excluídos, minorias. Eles fazem ações para acolher imigrantes e refugiados. O primeiro presidente de clube assumidamente homossexual na Alemanha é deles. Talvez nunca vá ser campeão, jogar uma Liga dos Campeões, mas compartilha valores importantes. Criou uma cultura que vai muito além de ganhar”, explica, ao também citar outros times, como o Rayo Vallecano, de Madrid.
VEGANISMO GANHA FORÇA NO ESPORTE E NO BRASIL
O Forest Green Rovers é um modesto clube da pequena cidade de Nailsworth, na Inglaterra, que virou vegano há 12 anos e é uma fonte de inspiração ao Laguna. Em 2017, chegaram à quarta divisão do futebol inglês pela primeira vez e, na última temporada, conseguiram o inédito acesso à terceira divisão.
O clube também compartilha os mesmos princípios do Laguna e ainda coleta água da chuva para irrigar o solo, usa painéis solares para obter energia e incentiva que seus torcedores usem transporte público para ir aos jogos, evitando maior emissão de poluentes. Além disso, os artigos esportivos são feitos de materiais reciclados. O projeto começou quando um empreendedor do ramo das energias renováveis virou dono do clube e passou a promover práticas sustentáveis ao meio ambiente.
O esporte já conta com nomes de peso que aderiram ao veganismo: Hector Bellerín e Chris Smalling, do futebol masculino, Alex Morgan, da seleção feminina dos EUA, o piloto de Fórmula 1 Lewis Hamilton, a tenista Serena Williams, as atletas da seleção brasileira de vôlei Macris e Carol, dentre outros.
Esportistas veganos apontam que a mudança na dieta pode melhorar a recuperação, a diminuição da inflamação e a redução da fadiga. “Minha recuperação após uma atividade física hoje sendo vegano é infinitamente melhor, mesmo bem mais velho, não sendo mais atleta. Eu até comparo com pessoas da minha idade ou mais jovens e isso é nítido”, diz Nabinger.
O Brasil vive um boom de empresas do ramo alimentício apostando em novos alimentos à base de proteína vegetal. Um mapeamento da Sociedade Brasileira Vegetariana mostra que já existem cerca de 240 restaurantes vegetarianos e veganos no País e mais de 3 mil estabelecimentos que oferecem a opção no cardápio.
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